sexta-feira, 28 de abril de 2017

Como a Paralisia de Análise destrói um jogo de tabuleiro - Opinião por Micael Sousa

A sociedade contemporânea esmaga-nos por exigir a nossa ubiquidade constante, agora possível porque estamos sempre online. O tempo parece encolher e o rol de atividades intermináveis asfixia o comum dos mortais que queira ser minimamente contemporâneo. Basicamente temos falta de tempo para tudo o que queremos fazer.
Tradução: Gervásio não se importava de esperar mais de uma hora enquanto o Quim contemplava a sua jogada, mas quando o Quim disse. "Oh é o meu turno?"
Fonte da imagem: https://venturacountyboardgamers.com/articles/analysis-paralysis/

Mas que tem isto que ver com os jogos de tabuleiro? Tem tudo! Os gamers já conhecem o termo AP, que não é mais que a sigla em inglês de Analysis Paralysis. Em português podemos traduzir por Paralisia de Análise, ou seja, é aquele tempo em que alguns jogadores param para pensar as jogadas, deixando todos os demais em suspenso à espera. Considero que o AP é uma característica cada vez mais relevante na hora de escolha e avaliação de um jogo, tanto que volto ao tema novamente. Assumo que sou muito intolerante ao AP – quase tanto como aos jogos cooperativos que são dominados por um alfa player - e que me enerva estar muito tempo à espera das jogadas dos restantes jogadores, por vezes dezenas de minutos, quando as minhas jogadas, habitualmente, demoram segundos, pois resultam de um processo heurístico conjugado com planeamento prévio.
Poderá a AP ser um ato de egoismo e desconsideração pelos restantes jogadores? Será que quando estão a pensar excessivamente nas jogadas esses jogadores pensam que estão, acima de tudo, a destruir o jogo para os restantes companheiros de partida? Provavelmente pode ser mera incosciência e incapacidade de lidar com tanta informação e opções. Algumas pessoas têm simplesmente dificuldade em decidir. Nesses casos, os jogos de tabuleiro são uma excelente ferramenta para lidar com essa incapacidade, o problema é que os jogadores que não padecem de AP é que sofrem na pele. Por outro lado, esta experiência da AP pode servir para demonstram na prática as nossas diferenças individuais. Não somos todos iguais, e nem sequer pensamos da mesma maneira, isto no sentido do que valorizamos ou na prática que temos, tal como o tempo que achamos adequado gastar no ato em si.

Vou tentar colocar de lado esta tendência para o particularismo do egoísta, em falar de mim e das minhas frustrações. Mesmo que não se enfureçam com o tempo que esperam pelas jogadas alheias, penso que todos admitimos que a AP de alguns jogadores e de alguns jogos podem destruir uma experiência de jogo. Em alguns jogos existe maior propensão para que isso que outros, tal como jogadores que são incorrigivelmente mais demorados que o comum dos mortais. Por vezes parece ser uma estratégia para enervar os outros – pronto lá estou outra vez a pensar no meu caso particular. Lembro-me de uma partida a 3 jogadores de Quantum que demorou perto de 3 horas. Obviamente nunca mais quis jogar o jogo.
Fonte da imagem: https://blog.todoist.com/2015/07/08/analysis-paralysis-and-your-productivity/

Mas como lidar com isto? Podemos evitar jogar com jogadores que demonstrem uma AP recorrente, mas isso destrói um dos aspetos mais relevantes dos jogos de tabuleiro como hobby: o convívio presencial lúdico que reforça os laços humanos. Podemos evitar os jogos mais suscetíveis de induzir AP nos jogadores, mas também aí podemos estar a colocar de lado excelentes jogos.

Como fazer então? Alguns jogadores incorrem na AP por indisciplina de jogo. Ou não conseguem definir a sua jogada quando o turno dos outros jogadores está a decorrer ou simplesmente distraem-se e só se apercebem quando é a sua vez de jogar. Bem sei que é impossível planear previamente em alguns jogos, pois as condições de jogo mudam jogada a jogada, mas em muitos jogos é possível evitar isso, no entanto é aconselhável ter uma ideia do que se pretende fazer ou ter múltiplas opções previamente pensadas. Podemos também limitar o número de jogadores, para ser mais reduzido o tempo total de jogo. Podemos jogar também apenas com pessoas que já dominem o jogo, pois isso habitualmente resulta em tempos de jogo mais curtos. Seja como for, estas duas últimas opções podem ter efeitos negativos nos laços afetivos entre a comunidade ou grupo de jogadores.

Gosto de jogar jogos longos, mas tenho de sentir que estou a jogar e não simplesmente a assistir a uma partida alheia. Isto é algo que me preocupa sinceramente. Quando escolho adquirir um jogo para a minha coleção uma das primeiras coisas que vou estudar é o tempo de jogo, pois já sei: com o pouco tempo disponível que tenho e com a recorrência da AP, seguramente o tempo efectivo de jogo será tanto que nunca terei oportunidade real de jogar o dito jogo.

Resta tentar encontrar um equilíbrio para que a experiência de jogo não seja destruída e para não destruir também amizades que se fundam nos jogos de tabuleiro.

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Broom Service - Análise por Micael Sousa

"Estou com um bocado de pressa porque tenho de fazer poções mágicas para entregar, é que isto tem sido uma correria aqui na empresa e nem sempre é fácil gerir os colaboradores, pois alguns andam sempre armados em corajosos e depois não fazem nada."


Isto podia ser um desabafo de uma das bruxas de Broom Service. Este jogo de Andreas Pelikan e Alexander Pfister venceu o prestigiado Kennerspiel des Jahres em 2015, pelo que é impossível não ficarmos pelo menos um pouco curiosos. Mas será um típico eurogame?

Não, nem por isso, ou nada disso mesmo. O tema de Broom Service começa por ser original. Supostamente estamos a gerir uma empresa de bruxas, druidas, gnomos e fadas. A nossa empresa tem como grande objetivo a distribuição de poções mágicas. Para isso temos de conseguir produzir poções e distribui-las mundo fora. As nossas bruxas são especialistas em viagens, os druidas na entrega das poções desejadas, os gnomos na gestão da matéria-prima e as fadas na dissipação do mau tempo atmosférico que nos prejudicaria o negócio. Bem, mas isto assim parece mais um jogo de gestão disfarçado. Tem um pouco de gestão, mas é, acima de tudo, um jogo de apanha de bens e entregas, do género “pick up and delivery”.

A grande originalidade do jogo é o mecanismo que nos permite arriscar e tomar decisões estratégicas que potenciam as nossas acções. Podemos ser grandes cobardes ou herois corajosos, e isso pode mudar tudo, o nosso jogo e o dos adversários, pois Broom Service acaba por ser bastante interactivo e quase uma corrida.

Passemos às mecânicas. Cada jogador tem exactamente duas bruxas no mapa de tabuleiro, composto por vários tipos de terreno que podem ser visitados se forem jogadas as cartas de bruxa indicadas para lá chegar. Cada jogador tem também um conjunto de cartas extamente igual, composto: por 4 cartas de bruxa, que permitem mover as peças do tabuleiro para o tipo de terreno indicado; 2 druidas que permitem entregar poções de acordo com o tipo de terreno em causa, sendo que cada um deles funciona em dois tipos de terreno diferente; 3 gnomos, que permitem produzir varinhas mágicas e os 3 tipos diferentes de poções; 1 fada das nuvens, que permite gastar varinhas mágicas para fazer desaparecer as nuvens e possibilitar a passagem por esses terrenos. De notar que o objetivo é entregar poções em torres que existem no mapa, cada torre tem uma das 3 cores correspondente aos 3 tipos de poções. Sempre que uma entrega se faz com sucesso o jogar que a concretizou ganha pontos de vitória, as torres mais valiosas são as que estão mais distantes da posição inicial das bruxas. Algumas destas torres permitem receber infinitas poções, enquanto outras apenas permitem uma entrega, o que gera um efeito de corrida.

Mas o que torna Broom Service diferente é o efeito de aposta, do “push your luck”. Pois é, podemos sempre optar, em todas as acções, por fazer a versão cobarde ou corajosa da carta. As acções cobardes permitem executar de imediato a acção quando ativamos a carta. As acções corajosas só podem ser efectuadas se nessa ronda mais ninguém jogar a mesma carta de forma corajosa, sendo que só faz a acção corajosa o ultimo jogador a colocar a carta na mesa. Ou seja, os outros jogadores corajosos não jogam a ronda se outro jogador invocar a mesma carta segundo a ordem de jogo. Como só levamos 4 cartas por turno a jogo, escolhidas daquele baralho que é exactamente igual para todos os jogadores (apenas mudando a cor), não sabemos quais as cartas que os outros jogadores têm na mão. Porque os jogadores são obrigados a jogar as cartas da mão que tiverem iguais àquela que foi invocada pelo primeiro jogador dessa ronda gera-se um efeito de incerteza estratégico, mas para o qual podemos recolher indícios no tabuleiro e se estivermos a acompanhar as jogadas dos nossos concorrentes. De notar que as acções corajosas são muito melhores que as cobardes e fazem mesmo a diferença no desenrolar do jogo.

Cada jogo de Broom Service é composto por 7 turnos e múltiplas rondas. Em cada turno é revelada uma carta que muda algumas das regras para esse turno. O turno desenrola-se do seguinte modo: decide-se quem é o primeiro jogador; o primeiro jogador invoca a sua carta, dizendo se faz a acção cobarde ou corajosa da carta; na ordem do ponteiro dos relógios os restantes jogadores jogam, respetivamente e na sua vez, a carta invocada anteriormente caso a tenham entre as 4 escolhidas para o turno, escolhendo se querem fazer a acção cobarde ou corajosa; de seguida o próximo jogador é aquele que fez com sucesso uma carta corajosa ou o jogador a seguir na ordem dos ponteiros do relógio, caso não tenha existido acção corajosa nessa ronda.

Isto tudo para explicar que esta mecânica das acções cobardes e corajosas e das 4 cartas que vão a jogo cria uma experiência de jogo interessante, bastante interativa e por vezes hilariante. Quem não acha divertido dizer “Sou uma bruxa cobarde da floresta”, pois o jogo diz que devemos enunciar e dizer com todas as palavras se somos cobardes ou corajosos.

Para além da gestão dos recursos, das acções, da dinâmica no mapa, de um planeamento de longo prazo, existe a necessidade de ler as jogadas dos adversários para os antecipar tal como o seu comportamento, isto enquanto nos preocupamos em parecer sérios também e algo dissimulados. Poderiamos sempre optar por fazer acções cobardes e seguras, mas quem não arrisca no momento certo perde o jogo. Depois, é irresistível fazer as acções corajosas, pois são muito mais poderosas que as cobardes. Temos uma experiência prática e simplificada de como a ganância nos pode atraiçoar, mas de uma forma divertida.

Parece-me que a solução de cartas penalizadoras quando o jogo se joga com menos de 5 jogadores são excessivamente penalizadoras, podendo prejudicar demasiado certos jogadores de forma aleatória, algo que pode ser irritante.

Para finalizar. O jogo termina no 7 turno e ganha quem tiver acumulado mais pontos de vitória através das entregas que fez, somando-se pontos pelas combinações dos vários recursos sobrantes e das nuvens, sendo que estas últimas podem valer muitos pontos (sempre que removemos uma nuvem com uma fada ganhamos a peça da nuvem que tem indicação da carga elétrica que tinha, sendo que quantos mais cargas destas acumularmos mais pontos recebemos também no final). Existem mais umas variantes para tornar o jogo mais complexo e ter mais variantes aos pontos de vitória.
Então para mim o Broom Service é um daqueles jogos a ter na colecção, pois é divertido e a sorte que tem associada é controlável. É aquele tipo de jogo bom para aliviar de algo mais pesado, mas que tem decisões interessantes para explorar e que causa sensações que não nos deixam indiferentes.
A arte e o design gráfico do jogo são belíssimos!

Jogo: Broom Service
Ano: 2015
Avaliador: Micael Sousa
Tipo: Entregas
Tema: Fantasia
Preparação: 5 minuto
Duração: 75 - 90 minutos
Nº de Jogadores: 2 - 5
Nº Ideal de jogadores: 5
Dimensão: Médio
Preço médio: 40€
Idade: 10+

Qualidade dos Componentes: 8
Dimensão dos Componentes: 9
Instruções/Regras: 9
Aleatoriedade: 7
Replicabilidade: 8
Pertinência do Tema: 9
Coerência do Tema: 8
Ordem: 9
Mecânicas: 7
Grafismo/Iconografia: 10
Interesse/Diversão: 9
Interação: 9
Tempo de Espera: 9
Opções/turno: 7
Área de jogo: 9
Dependência de Texto: 9
Curva de Aprendizagem: 9

Pontuação: 8,35
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